Que alguém a lance, à primeira pedra, a este livro de Sérgio Nazar David, em boa hora reeditado pela 7Letras, e indicado em 2006 ao Prêmio Portugal Telecom. Uma pedra ao mesmo tempo macia e áspera, feita de comoção e deslumbramento. Essa pedra poderia comparar-se àquela outra, inicial, a que edificou templos nossos e foi sendo por nós habitada. Insubstituível e única seria então essa pedra, como é a memória - que regressa sempre, e que, tal como o poema, é multifacetada. E, como o poema a fazer-se, terá sempre a substância da mais dúctil beleza. Regressada sempre outra, nunca igual. Lançar uma pedra é inaugurar coisas, mostrar como a poesia, sendo do tempo, os atravessa e os visita, aos tempos. Em magnificat. E magnificamente. Assim: "E que depois que depois de depois de depois / de amanhã, se não mais houvesse / mundo, um homem ainda assim / amanhecesse esquecendo-se // da noite, e, abrindo a porta, o zimbório, / o fino vão entre as telhas, / fizesse a primeira pedra, / edificando-a como nunca antes fora // pedra alguma feita". Mas, porque lhe assiste a matéria do "vento, d[o] / puro silêncio, d[o] azeite", essa pedra pode, como o poema, "andar nas bordas" do "corpo dividido". E, como o poema, "guarda o que guarda, / isto é vive pra nada". Nessa dimensão lírica de puro nada, ou justamente por sua causa, o poema vai sendo feito e deposto num lugar de absoluta urgência e insurgência, insistindo a presença do outro, convidando-o a entrar num mundo onde, como dizia outro grande poeta, Mário Cesariny, "só a imaginação transforma, só a imaginação transtorna". Transformar e transtornar - esta poderia ser também a chave para lermos este livro belíssimo, onde, ao lado de poemas terríficos como "Limite", se encontram versos comoventes como estes: "O primeiro bicho / que vi num livro / (de que eu me lembre) / foi um elefante. / Mas ele era voador". Por isso, e afinal, não é preciso que alguém a lance, à primeira pedra. Ela já foi lançada. Que se faça agora em voo - Ana Luísa Amaral