Na minúscula cela de uma prisão desativada, uma estante de escaninhos, montada com embalagens de cigarro Marlboro, guarda pacotes de cartas. Nas mensagens, a farmacêutica A’ida descreve ao amante preso, o mecânico Xavier, detalhes de seu cotidiano. Quer atualizá-lo sobre o que acontece na rotina de sua cidade um vilarejo inventado, que pode ficar em qualquer lugar do mundo. Mas se empenha também no envio de imagens e lembranças que o ajudem a suportar o cárcere, onde cumpre pena perpétua por ser um dos membros fundadores de um grupo terrorista. No verso das cartas, Xavier faz anotações: o preço do ouro, os versos de um poeta inuíte, frases de Eduardo Galeano, índices da especulação financeira. De A a X Uma história contada em cartas concorreu, com outros 12 livros de ficção, ao Man Booker Prize de 2008. Marca a investida de John Berger, um dos mais prestigiados autores ingleses da atualidade, no romance epistolar. A crítica internacional identificou a escolha pelo gênero como um ato de resistência em si: em vez de e-mails, linhas escritas à mão. Uma forma de ressaltar o elogio às possibilidades de rebeldia cotidiana que é o próprio cerne da obra. E uma maneira, também, de entremear a conhecida delicadeza do autor, identificada não raro com a palavra ternura, ao seu também famoso hábito de expor, implacável, as mazelas de nossos tempos. Em suas cartas, A’ida narra a Xavier a evolução de uma ameaça sem nome, um conflito indeterminado, que poderia ter como cenário o Oriente Médio ou a América Latina. Endereçando suas missivas a mi guapo, ya nour ou mi soplete, ela embaralha as possibilidades de identificação geográfica. Da mesma forma, cita lugares como Espanha, Cartago ou Romênia. Já Xavier, em suas anotações, nas costas das cartas, faz alusões a locais como Venezuela, Bolívia, Paris, Moscou e Mianmar. Se a identidade e a localização de A’ida e Xavier são nebulosas, o seu tempo, porém, é indubitável: eles falam do contemporâneo. Em uma de suas notas, o encarcerado cita um discurso de Hugo Chávez em Moscou, em julho de 2006. Em outra, celebra a doação de terras a trabalhadores rurais na Bolívia, por Evo Morales. Também brinca com a perversidade das siglas da geopolítica contemporânea: FMI BM GATT OMC NAFTA ALCA seus acrônimos silenciam a língua, assim como suas ações sufocam o mundo. iante desse giro cosmopolita, perfilam-se rituais antigos. A’ida os descreve com minimalismo poético, empenhada em enviar um pouco de seu encantamento ao amante preso: o jeito como a vizinha cata o feijão, o aroma de baunilha queimada da loja de doces, uma receita pessoal de geleia de cassis. Compõe, assim, um método próprio de resistência. Enquanto o inimigo identificado genericamente como eles carrega suas metralhadoras, a farmacêutica enumera, em sua escrita, esses pequenos atos de rebeldia cotidiana que montam a delicadeza do singular. Por isso, De A a X tem sido celebrado não apenas como uma história de amor, mas, sobretudo, como uma mensagem contra a opressão. Em vez de identificar heróis e culpados, elabora um cuidadoso convite à tomada de consciência este fruto que, em toda a prosa de Berger, aparece como extrato necessário do labor literário.