Que viva Changó, que viva Changó señores!, cantam Celina e Reutílio, enquanto leio estas páginas. Posso ouvir, com sua vela acesa e seu incenso de canela, cravo e maçã, Lívia, uma venezuelana que se amineira, cantando e pedindo justiça ao orixá iorubano no dia de Santa Bárbara. Este estranhamento entre os diferentes cruzos na diáspora africana, no qual, na santería, Changó é celebrado no dia em que, em nossas terras, saudamos Iansã, mostra que a maneira pela qual a divindade nagô traçou sua estratégia de sobrevivência em meio ao rolo compressor colonial não foi se inflamar na fogueira de João nem empunhar a chave de Pedro ou sentar ao lado do leão de Jerônimo. Sango, sobrevivente nas encruzilhadas das colônias espanholas, deveio mulher, deveio guerreira, empunhou os raios e trovões de Bárbara para persistir lançando o aché com seu machado de duas faces! Digo isso porque a filósofa-cronista, autora desse livro, poeta-historiadora, resplende a chama da vela que acendeu no dia 04 de dezembro em Caracas e nos inebria, lucidamente, com o doce aroma das especiarias tão caras, em todos os sentidos, pelos colonizadores. Lívia Vargas, com sua escrita que é também raio e trovão, nos mostra o real em sua oscilação, de uma Venezuela que escapa aos discursos brasileiros de direita ou de esquerda, que insistem em manter a perspectiva dualista, pois as vidas singulares sempre lhes importou menos do que as tomadas políticas de posição. Lívia, uma vivente, uma sobrevivente, uma retornante, uma exilada, tão próxima e distante de nós, tão distante e próxima de sua terra, nos dá esse presente escrito que nos sacode, porque precisa sacudir, como uma espécie de contra-sacudón, nossas estruturas de compreensão do outro para que seja possível uma sincera abertura à singularidade dessas experiências que ela nos traz. Como diz Thamara Rodrigues no prefácio destes trânsitos, o leitor precisará de fôlego e sensibilidade para acompanhar Lívia nessa caminhada tão sua, pelas ruas de sua cidade, e