... assim, o confronto entre a obra filosófica de Bergson e o romance de Proust será atravessado por aquilo que julgamos ser um dos pontos cruciais do longo embate entre o discurso conceitual e o discurso metafórico, a saber, em que medida a própria linguagem, na origem da nomeação das coisas do mundo, é responsável pelo entrelaçamento destes dois discursos que se querem distintos, mas que se encontram de alguma forma ancorados, um ao outro. O recurso à expressão de pensamento que a linguagem nos oferece revela, sobretudo sob a forma das metáforas, o complexo e intrincado processo de ‘tradução’, de deslocamento e de trânsito de sentidos que se opera por meio de nossas capacidades de percepção, imaginação e memória, na construção de conhecimento. O livro que o leitor tem em mãos é uma peça delicada, fruto de um artesanato hábil e sutil. A autora trilhou um caminho difícil, transitando entre duas armadilhas: primeiramente, teve de evitar que a relação entre filosofia e literatura se transformasse numa compreensão teórica da obra de arte; em segundo lugar, teve de superar a tentação de reduzir a percepção singular do escritor à descrição objetiva do filósofo. A dificuldade deriva de que, entre as duas extrapolações, a originalidade do escritor também produz conhecimento, e a objetividade do filósofo não deixa de ser penetrada por uma poética que ele vê nas coisas. Assim, embora separados, se comunicam pela mediação da autonomia presente em cada um. E a autora logrou entender que, especialmente entre Proust e Bergson, esta vizinhança peculiar é particularmente importante porque enseja uma comparação que nos leva a entender melhor cada um em si mesmo. Mas para isso é necessário que a sensibilidade esteja presente na apreensão da filosofia e que a reflexão se faça instrumento da leitura do romance, ambas na medida precisa que somente a intuição pode proporcionar. Estela Sahm chegou a este resultado por via de um trabalho árduo e profundo, traduzido numa expressão simples e clara. Com isso a autora mostra como a filosofia e a literatura nos conduzem à participação no enigma do tempo em sua revelação infinita, e esta compreensão de uma verdade sempre em vias de realização torna a existência mais humana e mais autêntica.