Cada época produz uma rede de saber, de poder e de subjetivação própria, reflexo da relação do homem com Deus, com a natureza, com a cultura e consigo mesmo. Assim, cada época se encarrega de produzir manifestações patológicas singulares e de configurar um discurso particular que a define e a identifica. Com base nisso, pode-se dizer que o tempo de Freud foi o da subjetivação neurótica; o mecanismo básico de defesa psíquica era o recalque. A repressão figurava no cenário social como uma prática freqüente, assegurando a eficácia do recalque. O pensamento freudiano subverteu, por completo, a suposição do século XVIII de que o homem só podia ter bem-estar, ou seja, um estado melhor, quando ele fosse bom e moralmente correto. O interesse de Freud não residiu no bem-estar e sim no mal-estar. Se pensarmos que o contexto social de hoje não adota a repressão como prática do controle social mais freqüente, conjeturamos que a ação do recalque se tornou mais vulnerável, pois não conta com as amarras da repressão para garantir sua eficácia. A quebra dos limites e das barreiras impostos pelas exigências do mundo atual fez a transgressão passar a ser um ato cotidiano. A ausência do limite propicia a proliferação de atos obscenos. Ao extrapolarem os limites revelando o que está além da cena, esses atos chocam pela crueza que a prevalência da imagem provoca, quando destituída de um campo de representação que permita uma significação. A tônica do sem limite se manifesta hoje em todos os níveis - dos comportamentos, da fala e da produção. A ausência da repressão social fez emergir o que a neurose se empenhava em repudiar - as fantasias perversas. Fez emergir também um tipo de discurso cuja característica é falar sem limite, uma espécie de fala obscena, que mostra mais do que significa. Falar sem limites é o campo próprio do perverso, posto que ele atua na própria fala. Este livro é o resultado de cuidadosa pesquisa clínica sobre o discurso perverso, partindo da suposição que o discurso mudou. Mudou o discurso social, mudou o discurso na clínica. E com que ouvidos - pergunta a autora - nos dispomos a escutar esses novos sujeitos constituídos numa subjetivação não mais neurótica? Qual será a direção do tratamento, nestes casos? De que recursos teóricos e técnicos dispomos? 'A clínica da perversão' é um importante livro sobre o mundo sem limites e o discurso aí engendrado. O nosso mundo, o mundo dos excessos, das transgressões, da predominância da imagem sobre o pensamento e, sobretudo, da obscenidade contemporânea. O que um sujeito perverso poderia querer da análise? Eis a questão que orienta a pesquisa deste livro.