Uma vez, há muito tempo, encontrei Arnaldo Antunes na Consolação com a Paulista, aqui em São Paulo. Já nos conhecíamos, mas não éramos propriamente amigos. Apesar de um pouco atrapalhado com a mobilete que pilotava com certa dificuldade, me ofereceu carona. E fomos despretensiosamente conversando em meio ao vento, até que ele me deixou nas redondezas do meu destino. As palavras que trocamos, enquanto mantínhamos a atenção simultaneamente no ritmo alternado do equilíbrio-desequilíbrio, permaneceram comigo. Pensei nelas ainda muito depois daquele dia. Numa outra vez, era eu quem vinha de moto pela Teodoro e dei de cara com ele, subindo a rua a pé. Levei-o até o lugar em que ele estava morando por uns tempos, em Perdizes. Usar capacetejá era então obrigatório e não falamos muito pelo caminho. Quando chegamos, eu não quis entrar; alguém me esperava. Atualizamos a conversa, que foi se esticando, ali mesmo na calçada: o que estávamos fazendo ou planejávamos fazer e, principalmente, quem e o quê naquele momento estava piscando mais à nossa atenção. Lembro que, dias mais tarde, disse à minha namorada que, sem nem de longe se propor a isso, Arnaldo havia, novamente, melhorado a antena do meu receptor. Semelhante à primeira vez, aquele nosso papo casual teve seu efeito estendido diante de mim. Como se indicasse uma pista na floresta de signos que me ajudasse a encontrar o rumo de onde eu desejava e, na época, precisava mesmo ir. Bem, à essa altura todo mundo já sabe que Arnaldo sabe como nos levar embarcados nos sons sentidos figuras das palavras na direção de algum lugar em que, chegando inesperadamente, estar é bastante. E às vezes necessário, para não sermos apenas um cada um no meio de todos. Faz parte disso a sua conhecida habilidade de se deslocar por áreas de produção muito diversas e encontrar nelas pontos de contato, quando não amplas e insuspeitadas afinidades. E ainda quando não é esse o caso, diante do ponto final da diferença, apostar no convívio (embora não costume fazer por menos para obtusos de todos os clubes). Em contato com o mundo a partir da cidade que ele chama de gigante liquidificador, onde os lugares saem do lugar, em que, como em nenhuma outra do Brasil, justamente convivem e/ou se misturam com alta potência macro e microculturas, investimentos de massa e de vanguarda, aquela habilidade de Arnaldo encorpou seu modo particular de metalinguagem. Um bom pedaço disso tudo está à mostra no primeiro livro a reunir os seus textos esparsos que, a pedido dele, organizei chamado 40 Escritos (publicado em 2000).A ideia para o títulome veio do fato de que nossa escolha tinha chegado a esse número de textos, em coincidência com a idade que ele estava completando na época. Era como se, até que aparecesse, cada um daqueles escritos tivesse sido gestado durante toda a vida pregressa do autor. E registrando a visão de Arnaldo sobre questões diversas, em sua maioria a partir do trabalho de outros artistas, além do dele mesmo, era também como se, na outra ponta do tempo, o conjunto esboçasse um mapa do seu pensamento. Agora são Outros 40. Uma década passou. Fora três exceções, os textos são posteriores aos do primeiro 40 e tendem a se concentrar um pouco mais em música e poesia ou literatura. Mas mantendo o horizonte largo, de olho em muita gente: Erasmo Carlos, Pojucan, Zé Agrippino, Paulo Fridman, Ferrez, Augusto de Campos, Jussara Silveira, Cézar Mendes, Eduardo Muylaert, Waly Salomão, Planet Hemp, Sérgio Guerra, Lourenço Mutarelli, ela, ele, você entre vários outros. E, desse modo, é como se o esboço daquele mapa, para sempre incompleto, crescesse, reiterando alguns traços, clareando áreas, detalhando partes. Como se. Outra vez. Teorias velhas e novas afirmam que a linguagem verbal é metafórica por definição. Irremediavelmente diversa daquilo que nomeia, a palavra é sempre um ‘como se’. Nunca para de operar transferências, estabelecendo analogias entre coisas e coisas e ideias. Para falar disso recorre àquilo e vice-versa.E tradicionalmente o poetaé aquele que possui talento e treino para melhor configurar em palavras as qualidades do que estava ausente, escondido ou ainda mal expresso, dando-lhe analogicamente uma presença. Não necessariamente no texto do poema. Eventualmente em outros lugares. No faroeste de John Ford (‘quando a lenda supera a realidade, publique-se a lenda’), em Xanadu, em Jaçanã, na Alphaville de Godard (‘acontece de a realidade ser muito complexa para a transmissão oral; a lenda a retransmite sob uma forma que lhe possibilitacorrer mundo’) ou na Alphaville-São Paulo em qualquer meio em qualquer parte o tempo todo aqui agora. Um deles, Octavio Paz, escreveu que os poetas dos tempos modernos têm de lidar também com o princípio da ironia, o par necessário e oposto da analogia, a descontinuidade da prosa invadindo a cadência da poesia, a consciência da linguagem sobre suas próprias limitações, a perspectiva crítica que, afastando, igualmente revela. A aresta viva no recorte. O que me faz lembrar do começo. De um trabalho que Arnaldo publicou no Kataloki, em 81: uma montagem feita com a foto de Pelé ajeitando a bola para o chute que seria o do seu milésimo gol. No lugar da bola, a cabeça de Ezra Pound, mais o fragmento de uma frase deste sobreuma das propriedades principais da literatura e/ou da poesia: ‘nutrir de impulsos’. Neste Outros 40, é mais uma vez a partir dessa divisa e particularmente do seu dom de equilíbrio-desequilíbrio entre o espantosamente óbvio e o evidentemente estranho que Arnaldo impulsiona o pensamento.