No final do século XIX, corria nos jornais russos o boato de que de que "a história inteira do povo judeu atesta sua incapacidade para as artes plásticas". A trajetória do pintor Marc Chagall (1887-1985), um dos expoentes do modernismo europeu, prova o contrário. Sua biografia, do berço ao túmulo, está registrada nas mais de 700 páginas de Chagall, de Jackie Wullschlager. O artista é fruto de Vitebsk, no então Território do Assentamento, onde Catarina, a Grande confinara todos os judeus de seu império. Mas a Revolução Russa e duas guerras mundiais o levaram para o exílio, onde teve a oportunidade de pintar a história do século XX como nenhum outro. O pintor terminou seus dias como um mestre em Paris. O livro mostra que o período em Vitebsk, além de legar uma relação desesperada com a comida, tingiu o cotidiano do pintor com as tradições judias ortodoxas, uma segunda realidade palpável no cerne da vida diária e tema recorrente em suas pinturas, ao lado de questões como nascimento, amor e morte. O artista sempre sofreu com a ambivalência de seu relacionamento com a Rússia e tinha dúvidas quanto a seu lugar na tradição artística do país. Havia nele um misto de autopiedade e excessiva autoconfiança. Quando jovem, identificava-se com Cristo, tanto na qualidade de judeu perseguido como na de um espírito radical e criativo, mas incompreendido. Na velhice, perguntava a todos "Você ama Chagall?", como se ele fosse uma reputação e não uma pessoa viva. Mas o diferencial da obra de Wullschlager é a percepção do temperamento vulnerável do artista e sua extrema dependência das mulheres. Chagall era reverenciado e protegido pela mãe e buscaria estender esse tipo de relação a todas as suas futuras companheiras, sempre emocionalmente poderosas e socialmente bem posicionadas.