Trataremos, neste livro, da história de um encontro entre o pensamento médico brasileiro e um inseto. Por volta da década de 1910, a identificação de formas flageladas no intestino do hematófago permite a descoberta de um tripanossomo patogênico e da doença que ele provocaria, a tireoidite parasitária. Mas é preciso esperar 1935 para ver aparecer a entidade que lhe corresponde em definitivo, a tripanossomíase americana. Incontestavelmente, o discernimento da novidade em patologia nada tem de automático: o modo de reconhecimento de uma entidade mórbida depende da própria estrutura da percepção médica. Esta se define, conforme a época, por limiares perceptivos que delimitam seu campo de ação. Em vez de orientar a análise na direção da fecundidade do sistema médico de Chagas, é necessário salientar, de antemão, os princípios que lhe prescrevem seus limites. A formação do conceito de tireoidite parasitária supõe a articulação de um ciclo evolutivo, de um estudo anatomoclínico e de uma investigação epidemiológica. A partir dali, abre-se, durante mais de vinte anos, um longo período crítico. Evitar todo anacronismo é demonstrar como o pensamento médico só podia oscilar entre duas posições. De um lado, reforçar a integração do que ele possui ligado aos fatos: a tireoidite parasitária designa uma teoria parasitária do bócio tal como aparece no Brasil. De outro lado, dissociar o que ele mantém separado: uma parasitose e o bócio. É a precedência epistemológica da endocrinologia que imporá essas condições irreconciliáveis: Chagas e seus oponentes deram a mesma explicação da patogenia da principal síndrome, o mixedema. É necessário não se confundir: Chagas não descobriu a tripanossomíase americana e seus oponentes não são uns tolos. Chagas e sua escola não associaram o bócio à tripanossomíase americana, mas identificaram a nova doença com a tireoidite parasitária. Seus oponentes não tentaram dissociar o bócio da tripanossomíase americana, mas de uma parasitose indescritível. O ano de 1935 foi marcado por uma reelaboração do saber. Pela primeira vez na história desta doença, Romaña deu a descrição clínica da tripanossomíase americana. Ocorre o surgimento de uma calamidade continental. A Doença de Chagas: este título, compreendemos, encerra uma ambigüidade fundamental. O objetivo deste livro é dissipá-la.