O livro começa com o exame de uma pilha de papéis da burocracia soviética do período stalinista. O que poderia parecer uma atividade corriqueira ou enfadonha, pelo olhar de Mathews, se enche de vida e de detalhes. Em cada ordem emitida com displicência, em cada palavra escrita na dureza dos relatórios militares, está o destino de pessoas, ou nesse caso, de uma pessoa em particular: Boris Lvovich, avô materno do autor. Considerado dissidente do partido, uma assinatura garatujada de um funcionário obscuro o levou à morte e ao desaparecimento de seu corpo como se nunca houvesse existido. E, se não há o que fazer contra a morte física, contra a morte da memória, as letras e a sensibilidade de Owen Mathews são um antídoto. A União Soviética saiu da II Guerra Mundial para entrar num outro tipo de conflito, sem que a violência houvesse de fato explodido, mas numa constante tensão com o ocidente, no período que ficou conhecido como Guerra Fria. É nessa fase que se passa o segundo segmento da trajetória familiar, com cartas apaixonadas trocadas entre Moscou e o Reino Unido pelos pais de Mathews. Por fim, chegamos à fase da dissolução do império, com a Rússia retomando de maneira inicialmente caótica o capitalismo, de um golpe só. E é nesse momento que entra em cena a memória pessoal do autor. As histórias, entretanto, não são colocadas no livro de maneira estanque - elas se entrecruzam e formam um painel dinâmico das transformações pelas quais passou a União Soviética e depois a Rússia em meio século. A herança de Stalin é um livro cheio de vida. Repleto de afetos e de memórias, de tudo aquilo que faz do ser humano especial e apaixonante - mesmo em meio à grande marcha da história, com suas revoluções, guerras e carrancas de ditadores sinistros.