Pensar a questão da cultura no Brasil é uma tarefa marcada por uma complexidade toda especial e que, por isso, exige do investigador uma dose elevada de habilidade e invenção. Mais do que o resultado da simples fusão de grupos étnicos portadores de experiências ou tradições culturais diferentes - idéia imortalizada seja na imagem corrente do melting pot brasileiro ou nas inúmeras expressões que se limitam a definir o país como o 'feliz encontro de três raças - o branco, o negro e o índio' -, a cultura, no Brasil, aponta para o confronto essencialmente contraditório e problemático de duas vertentes culturais - uma ocidental, representada pelo pensamento branco/europeu dos grupos dominantes, e outra não-ocidental - implicando, assim, um modo radical e substancialmente diferenciado de definir e se relacionar com o real -, tornada presente, especialmente, pela cultura negra, cujo vigor está longe de ter se arrefecido diante do jogo da dominação de classe a que foi e é submetido o negro no Brasil. Dessa forma, o simples pressuposto liberal do 'direito à diferença' que permeia boa parte dos estudos relativos à análise da diversidade cultural brasileira não é suficiente para dar conta, em sua amplitude, do desafio posto pela questão da cultura no Brasil. Aqui, a realidade cultural constitui-se num espaço bastante específico de luta e de tensão que precisa ser mais bem identificado, em suas linhas de força, pelos analistas sociais. É nesse sentido que se afirma o extremo interesse deste livro, voltado exatamente para a definição da natureza e da dinâmica desse confronto e do eventual entrecruzamento de tradições culturais marcadas por uma diversidade essencialmente radical, em que - quem sabe? - o dominado, pela sedução do dominante, subverte alguns dos princípios mais elementares do próprio jogo da dominação. Aponta-se, assim, para o Brasil como um locus bastante privilegiado do provável encontro da lucidez do Ocidente pós-moderno com os milenares mistérios e segredos da tradição cultural negra.