Com a mão espalmada da retórica e o punho fechado da lógica, Hobbes vai de encontro à equação religiosa que absolvia os súditos do vínculo de obediência ao soberano ‘sempre que há qualquer contradição entre os desígnios políticos do Papa e dos outros príncipes cristãos [...] e nesta escuridão de espíritos são levados a lutarem uns contra os outros’ (Leviatã, XLIV). Essa vocação da sua época culmina na expressão dada no quarto concílio de Latrão do Papa Inocêncio III. Uma derivação flagrante dessa tendência em Hobbes pode ser vista quando diz no Capítulo XXVI do Leviatã que ‘a lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão’. Mas o que isso quer dizer? Ele mesmo declara expressamente que, só depois de instituído o Estado, as leis de natureza se tornam leis, passam a ser ordens do Estado. Seria, então, porque as leis civis se limitam a atribuir validade jurídica às leis de natureza? As leis naturais ofereceriam o conteúdo da lei positiva? Já no Capítulo VI do De Cive é conhecida a passagem que diz que as leis de natureza proíbem o furto, o homicídio e o adultério, mas é a lei civil que determina quando e o que deve ser entendido como homicídio, adultério e furto. Matar o inimigo na guerra não é homicídio, nem qualquer subtração do que é de outro é roubo, mas apenas daquilo que for civilmente definido como propriedade do outro. A oferta da lei natural parece agora anulada diante do poder manipulativo da lei positiva. Sua própria diferenciação é negligenciada quando diz no mesmo capítulo do Leviatã que ‘a lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil, e a outra não é escrita e se chama natural’. A solução que oferece é um desafio para a compreensão do leitor.