Sabe-se lá por que, apesar de viver em Florianópolis há mais de duas décadas, Heron Moura continua sendo ignorado nos círculos literários catarinenses. É mais ou menos o mesmo caso de um outro poeta que há muito emigrou para Santa Catarina, o paulista Alckmar Luís dos Santos, vencedor do Prêmio Cult de Poesia. Seja como for, olimpicamente indiferente a esse estranho silêncio de seus conterrâneos em torno de sua obra, Heron Moura (como, de resto, Alckmar dos Santos) se consolida como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos. Não é para menos: este pernambucano de 42 anos é capaz, como poucos, de trançar o rigor - que faz de sua poesia um objeto difícil, quase áspero - a uma hospitalidade a que o leitor, qualquer leitor, não consegue resistir. Não sou eu quem o diz. Tal juízo, na verdade, advém de seus pares e da nata da crítica literária do país, que, em anos recentes, lhe outorgaram alguns dos mais importantes prêmios nacionais de poesia. Em 2000, por exemplo, foi o primeiro colocado no Concurso Minas de Cultura, o que lhe rendeu - além da mais vultosa quantia em dinheiro jamais paga a jovens poetas brasileiros - a publicação dos originais de Vendedores de Sono (São Paulo: Nankim, 1999), seu terceiro livro (os outros dois são Pergaminho, de 1987, e Margem Móvel, de 1995). E como que a confirmar a maturidade poética de Heron Moura, seu projeto literário seguinte - O respirante - acaba de ser agraciado com o Prêmio Goyaz de Poesia, que contou com cerca de cem inscritos e integrou um megaevento em que estiveram presentes intelectuais e poetas do quilate de Affonso Romano de Sant'Anna, Ivan Junqueira, Fabrício Carpinejar, Gilberto Mendonça Teles, Carlito Azevedo, Jorge Viveiros de Castro, Antonio Cícero e Marcos Siscar (que, aliás, foi o segundo classificado no concurso vencido por Heron Moura). Em tempo: para aqueles que choram a sorte da poesia em uma época de insensibilidade e indelicadeza, é preciso dizer que mais de 500 pessoas lotavam o auditório em que Heron Moura recebeu seu prêmio. Aguarda-se para os próximos meses, agora pela 7 Letras, a publicação de O respirante. Este ensaio, modestamente, prepara-lhe a chegada. O respirante é um ser precário: logo expirará. Antes disso, contudo, ele aspira. Ora, a poesia de Heron Moura vem percorrer precisamente o delgado arco que se retesa entre a aspiração e a expiração. Primeira descoberta do poeta: não se trata, propriamente, de um arco, mas, talvez, de um círculo completo. O respirante, afinal, aspira restos de si mesmo - aquilo que de si expira: "o ar ácido aspirado e tocado [...] vem direto dos pulmões". Assim, é preciso corrigir o enunciado que abre esta reflexão: a precariedade do respirante não diz respeito apenas à morte que em breve o colherá. Certo, "sua ração é escassa", e a consistência do respirante, no fundo, não é maior do que a de uma "coluna de fumo" prestes a se dissipar. Mas o fato é que a expiração não pertence somente ao futuro; está, a rigor, desde sempre presente no próprio ato - o de aspirar - que sustenta a vida. Eis, então, de onde vem a precariedade do respirante: de habitar a consciência da morte. Essa é sua casa - sua "máscara aérea", da qual, não por acaso, "a máscara mortuária / é a última variante". Essa é sua casa e sua máscara, sim, mas é, também, a única arma de que dispõe: "um escudo diante do rosto", "[um]a armadura". Uma estranha torção faz, pois, de sua fraqueza - a consciência da morte - a fonte de sua força: "Logo à frente de seu rosto, / ele sabe que está morto, / mas esse é seu alimento" (é "seu próprio adubo", como Heron Moura dirá em outro verso do poema). Ora, como isso é possível? Por que Heron Moura não entrega os pontos e diz, simplesmente, que a vida, saturada pela morte, é inviável? A resposta, ao que parece, está em que se inala algo mais do que se exala: "No consumo diário / de si mesmo, / na cisão do eu e da fronteira / a liberdade aspirada vem de fora / à beira do eu que respira". É um quase nada - "o respirante não tem / liberdade em estoque" -, mas é o suficiente para fazer funcionar "A máquina de metáforas/ girândola ou geringonça [...] / que se contrai e se expande /no ritmo do respirante". Tudo se passa, então, como se a liberdade não pudesse ser aspirada senão como uma espécie de resíduo que só se alcança depois que as narinas experimentam "o odor [...] da carcaça apodrecendo". Daí que se pode falar em transcendência, mas só sob a forma de "um vôo cambaleante". Cambaleante ou, se quiserem, disforme: "O sublime não tem forma", visto que sua única figura possível é, desde sempre, transfigurada pela experiência da morte. Como se nos presentear com essas perturbadoras descobertas fosse pouco, Heron Moura conclui o seu poema com uma síntese admirável de seus versos (e, quem sabe, da própria poesia como forma de expressão - inspiração? expiração? - humana). Nessa estrofe derradeira, a distinção entre aspiração e expiração desaparece para dar lugar a uma outra dicotomia - a do fluxo e da contracorrente, quer dizer, a da vida e da morte. E do encontro dessas duas forças - no ponto em que se situa a nau frágil do respirante -, emerge, com sorte, algo que quase não se sustenta, pois é "ruína, não arquitetura". Mas é tudo que o respirante tem; é tudo o que pode ter - e é por isso, uma coisa que não pode senão amar. Essa coisa - ou, antes, essa quase-coisa, esse espectro - é "[uma] plenitude sem forma", volátil e evanescente como o ar que se respira. "O náufrago respirante / Na plenitude sem forma /Respira no fluxo e na contracorrente".