O mau vidraceiro - cujo título foi retirado de uma das narrativas de Baudelaire nos Pequenos poemas em prosa - é uma reunião de 61 contos em que o artista plástico consagrado e escritor premiado que é Nuno Ramos matura o domínio dos seus meios literários, levando a arte fundamentalmente moderna da micronarrativa (Kafka, Cortázar etc.) a um grau de apuro poucas vezes alcançado. Se nas dimensões de parte dos textos o livro pode ser comparado, em termos brasileiros contemporâneos, aos de um Dalton Trevisan, a prosa de Nuno Ramos se diferencia, primeiro, por um maior rigor textual, distante do coloquialismo e da "prosa suja" de extração urbano-suburbana da linhagem do próprio Trevisan, ou de Rubem Fonseca e seguidores; segundo, por uma temática mais variada, que vai da realidade mais imediata à metafísica, passando pela política; terceiro, por um estilo necessariamente mais multiforme, a fim de dar conta de tal variedade: assim, cenas urbano-existenciais como "A glória" convivem com belas prosas poetizadas como "Ninguém", que por sua vez convivem com a miséria escatológica de "A velha", com a metalinguagem desiludida de "O deus leitor", a releitura cortazariana de "Regras para a direção do corpo" ou a fabulação irônica de "Pantomima". Também nas dimensões há variação, pois os contos podem ser verdadeiramente minúsculos, com apenas um parágrafo, ou conter "extensas" três ou quatros páginas. O que não varia é a referida precisão textual, de um autor atento às minúcias do estilo- tanto mais relevantes quanto menor a extensão do texto ­" assim como à sua fluidez " o que garante aos contos sua característica mais própria, de uma peça de prosa ficcional cujo todo pode e deve ser apreendido pelo leitor em seu conjunto, como, no campo literário, um poema, ou no campo escultórico, a forma-volume de um ovo. Tudo somado, à vasta genealogia dessa arte essencialmente moderna que é a micronarrativa (Baudelaire, Tchecov, Kafka, Cortázar, Trevisan etc.), com suas características velocidade e fragmentariedade - mas que também inclui a antiga arte das pequenas fábulas e parábolas tradicionais -, deve-se ainda acrescentar, no caso de Nuno Ramos, o nome de Gustave Flaubert, o escritor da "palavra exata" ("le mot juste"), que "esculpia" cada parágrafo como um poeta apura um verso, sem porém perder a necessária referencialidade da prosa, linguagem "realista" por excelência.