Reunindo textos críticos, esboços, anotações e fragmentos ficcionais, poucos livros fazem tanta justiça ao título quanto Ensaio geral, de Nuno Ramos. Escritos a partir de 1994, os ensaios desse volume tratam de arte, canção, literatura, esporte e futebol, temas aos quais se acrescentam projetos de exposição em que a palavra tem forte incidência - consolidando a imagem de Nuno Ramos como um artista plástico que com os livros Cujo e O pão do corvo (publicados respectivamente em 1993 e 2001, pela Editora 34) entrou para o rol dos mais instigantes escritores da literatura brasileira - além de roteiros para filmes, projetos de arte pública e textos de caráter memorialístico. Os textos desse livro são ensaios na acepção pura do termo - ou seria melhor dizer: na acepção "impura". Pois se o ensaio se caracteriza justamente pelo trânsito incessante entre reflexão e invenção, ficção e não-ficção, conceito e poiesis (no sentido do fazer artístico), Nuno Ramos imprime em todos eles a marca da "hesitação constitutiva" que identifica tanto na sua própria obra quanto nas vertentes que mais o interessam na arte contemporânea. Dividido em cinco partes, Ensaio geral traz inicialmente três seções temáticas - "A terra (Literatura e canção)", "À espera de um sol interno (Arte)" e "Os suplicantes (Esporte e futebol)" - que permitem estabelecer atalhos entre obras de escritores como Daniel Defoe (o autor de Robinson Crusoe), Euclides da Cunha, Nelson Rodrigues ou Samuel Beckett e um roteiro de filme que Nuno Ramos concebeu à margem de um trabalho crítico que se desdobra no espelho da criação. Da mesma maneira, um ensaio sobre Paulinho da Viola se comunica, por veios subterrâneos, com um esboço de instalação que, a exemplo de outros projetos aqui publicados, são detalhados por meio de fotografias e maquetes digitais. Nas duas últimas seções do livro - "É isto um homem? (A coisa pública)" e "De giro em giro (A parte maldita)" -, Nuno discute a realização de obras em escala pública (além de relembrar a figura de um homem público, seu avô, e do mundo de sua infância, onde sua avó certa vez jogou para o alto as notas da carteira enquanto repetia: "Isto é merda, Nuninho, isto é merda") e reconstitui episódios relacionados a projetos que, não obstante o caráter pessoal, revelam os impasses da produção atual. Em se tratando de um artista que articula com rara acuidade a invenção com a análise crítica, seus ensaios sobre Bruce Naumann, Matthew Barney, Amilcar de Castro, Oswaldo Goeldi e Mira Schendel revelam aquilo que, na introdução do livro, Nuno Ramos definiu como "o impulso [...] de uma espécie de energia reaprisionada, que se empregou mas não se deixou ir embora, uma alteridade guardada, pronta para ser acionada novamente" - um impulso, enfim, que ele diagnostica em obras que lhe servem de referência e a partir das quais organiza o trabalho de Sísifo de sua produção, que incorpora a idéia de um "escorregar para a frente". O ensaio em que analisa o "solipsismo objetivo" de Hélio Oiticica ("adiamento progressivo do mundo desde um centro de pureza onde se instaura um sujeito pleno, balanceado entre seus estímulos e seu repouso") fornece a cifra das contradições que imantam seu próprio trabalho. Mesmo quem está familiarizado com a arte de Nuno Ramos, porém, vai se surpreender com a leitura em conjunto de seus textos sobre futebol. Mais do que qualquer reflexão estética, suas elegias a Ademir da Guia, Tostão e Robinho são celebrações do atrito entre arte e vida, forma e fundo. E, ao analisar "os aspectos trágicos do futebol" no ensaio "Os suplicantes", ele afirma - na esteira de Georges Bataille - que "a oposição entre jogo e placar poderia ser entendida como oposição entre o erotismo e o sagrado - algo de fato é perpetuado, pela morte, no placar (o termo placar final já tem algo de lápide). Ao acúmulo erótico, em aberto e contínuo, próprio das jogadas, opõe-se o sagrado do placar, com seus correlatos de temor, permanência, tabu, catástrofe". Não existe melhor síntese para o modo como Nuno Ramos entende a arte e essa forma suprema de vivência estética representada pelo futebol: uma resistência aos sentidos coagulados - que só a escrita ondulante dos melhores ensaístas consegue captar.