O próprio Carl Gustav Jung (1875-1961) advertia aos candidatos a biografá-lo: ele é um "fenômeno um tanto complicado", que dificilmente seria compreendido por um único estudioso isoladamente. Sugeria um "comitê" nunca estabelecido que somasse estudos biográficos parciais, oriundos de campos diversos como a medicina, a filosofia, a religião, a mitologia e a arte. Nessa mesma linha, o biólogo Adolf Portmann disse que a trajetória de Jung só seria inteligível pelo esforço conjunto de "diversos trabalhos de vulcanologia". Por aí se vê o tamanho da ousadia da jornalista e escritora norte-americana Deirdre Bair ao tomar o psicólogo suíço, em todas as "erupções", como tema de seu Jung, uma biografia. Lançado originalmente em novembro de 2003, o livro é fruto de cerca de oito anos de pesquisa intensa, lidando com farta e por vezes inédita documentação. Com seu foco objetivo e equilibrado, consegue fugir tanto da bajulação "hagiográfica" quanto do rancor de tantos estudos do gênero, que não conseguem captar Jung para além das distorções movidas pela ingenuidade ou oportunismo. Esta obra tem pleno direito de ser considerada uma das mais completas abordagens já feitas da vida longa, densa e atribulada de um dos gigantes da psicologia moderna, nome de proa dos primeiros tempos da psicanálise, antes da dramática ruptura com Sigmund Freud, em 1912 e 1913. A relação de amor e ódio com Freud que o considerava seu "príncipe herdeiro" e encarregado de livrar a psicanálise do preconceito de ser uma ciência meramente "judaica" é, aliás, um tópico amplamente estudado por Bair, utilizando-se para tanto de passagens cruciais da correspondência entre os dois. O jorro criativo de Jung, nos limites de um surto psicótico, que se seguiu à separação do velho mestre, também merece detalhada reconstrução, com ênfase especial ao obscuro tratado "gnóstico" Os sete sermões aos mortos, em que Jung deu feição esotérica e arcaica à sua teoria psicológica então em germe. Um dos grandes méritos do trabalho de Bair é a competência com que nos situa na intimidade de seu personagem. Vemos de perto a evolução deste filho de um casal melancólico, um menino isolado e em conflito com a religiosidade oca de seu pai (pastor protestante), até os tempos de respeitável cientista do Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, onde enceta, entre 1902 e 1906, seus famosos testes de associação de palavras com pacientes esquizofrênicos. Tais pesquisas, que lhe renderam reputação internacional, foram também a fonte para uma das várias noções que cunhou e que depois transbordaram para a linguagem cotidiana: a idéia de "complexo", como agregado de idéias e afetos que habitam nossa personalidade de modo mais ou menos autônomo e incômodo em relação aos ditames da consciência. As expectativas quase messiânicas que nutriu pela psicanálise de Freud, o posterior desapontamento, a constituição da sua chamada "psicologia analítica" (ou "complexa") são recontados, não sem o arrojado e constante zoom pelas paixões "humanas, demasiado humanas" ali envolvidas. Também paixões de outra ordem não deixam de ser devidamente retratadas caso dos romances tórridos com Sabina Spielrein (sua ex-paciente, de que trata o filme Jornada da alma, de Roberto Faenza) e Toni Wolff, que Jung chegou a chamar de "segunda esposa", ao lado da por isso amargurada mas não menos devotada a seu marido Emma Jung.Tampouco outras relações tumultuadas, como o contato com o célebre escritor James Joyce, ficam de fora, ajudando o leitor a compor um quadro mais nítido sobre a importância de Jung no meio cultural de seu tempo, importância a qual não o impediu de fazer um desabafo como este, em carta de 1940, em pleno terremoto da Segunda Guerra Mundial: "Eu odeio o novo estilo, a nova arte, a nova música, literatura, política e sobretudo o novo homem! É a velha besta que não mudou desde o tempo dos trogloditas". Destaque todo particular é dado a uma das controvérsias que mais ameaçaram manchar a reputação de Jung: sua suposta "colaboração" com o regime nazista, devido ao fato de ter presidido, ao longo dos anos 30, uma associação internacional de psicoterapia com sede na Alemanha de Hitler. Sem escamotear as hesitações e ambigüidades políticas de Jung, Bair oferece elementos convincentes para se negar fundamento a esta denúncia , assim como faz em relação a outra polêmica, a de que Jung teria "roubado" de um aluno a paternidade da teoria que mais o tornou conhecido mundo afora, a do "inconsciente coletivo", a suposta estrutura psíquica universal, manifesta nos sonhos, fantasias e mitos os mais diversos. A narrativa de Bair inclui também impressões vívidas de pessoas submetidas a tratamento terapêutico com Jung, e comentários dele próprio sobre o seu "método" de trabalho como analista aspas mais do que justas, pela recusa do autor a receitas prontas, que atropelassem a singularidade de cada caso. Tal "método", dizia ele, tinha a ver com "ensinar as pessoas a se porem de acordo e se darem bem consigo mesmas, sem muito estardalhaço". Assistimos, com Bair, à guinada do "médico doutor" voltado ao tratamento individual de sofredores psíquicos ao "professor" afeito aos grandes debates culturais, filosóficos e religiosos afeito sobretudo a polemizar com as igrejas cristãs, dizendo que a religião institucionalizada, com seus dogmas envelhecidos, seria cada vez menos interessante para as pessoas, enquanto não desse lugar em seus ritos e símbolos ao lado obscuro e "demoníaco" da vida e do próprio Deus. Daí a importância, aos olhos de Jung, e em seus últimos trabalhos, do resgate da alquimia como contraponto ao dogmatismo eclesiástico e como forma de anunciação de um Cristo mais "interior" e de maior complexidade ética e psicológica, um símbolo vivo e pertinente para o homem atual, esse sujeito imerso em preocupações cotidianas que não lhe calam, antes aguçam, o anseio profundo por realização pessoal ou pelo que Jung chama de "individuação". A referência às viagens (Índia, África, por exemplo) e a comentários e comportamentos curiosos de Jung dá ainda mais tempero e graça a esse retrato de um personagem tanto mais cativante quanto mais contraditório e intenso.