Os frutos da resistência negra são heranças preciosas. Nas pegadas dessa luta, os punhos certeiros de Dora Lucia Bertulio ousaram abalar os edifícios dos meandros do Direito quando tudo era silêncio. A publicação de sua dissertação trinta anos depois de sua defesa indica, de um lado, que o racismo epistêmico e o colonialismo jurídico nos espoliou por três décadas da obra que introduziu a discussão racial no estudo e na prática do Direito. De outro lado, revela a potência e sofisticação crítico-téorica de um pensamento negro ancestralmente forjado e contemporaneamente atento aos conflitos tanto estruturais quanto urgentes da sociedade brasileira. Dando volta em sentido anti-horário na árvore do esquecimento, Dora nos confronta historiográfica e normativamente com o Direito enquanto agente-duplo, capaz de enunciar normas antirracistas disputadas pelos movimentos negros, ao mesmo tempo em que perpetua e reproduz diferenças raciais hierarquizadoras de nossa humanidade e cidadania. Diante desse horizonte, a edição desse obra central para os estudos das relações raciais chega em tempo de nos lembrar o que querem nos fazer esquecer: que somos fruto de uma linhagem de gente disposta ao enfrentamento; que a denúncia é uma marca incessante da intelectualidade negra; que a rebeldia nos molda como povo, que nossa tarefa é seguir honrando os passos daquelas que, como Dora, abriram trincheiras que nos fazem hoje possibilidade.