A pretensão de eleger parâmetros tão excepcionalmente elevados costuma ser realmente um convite ao fracasso, mas Lancellotti desincumbe-se com maestria do enorme desafio a que se impôs: Em nome do pai dos burros é um livro à primeira lida tão estranho quanto o título do qual teimosamente o autor se recusou a abrir mão. Mas cada página, cada um de seus dezoito capítulos, entre um Prelúdio e um Remate, exercem sobre o leitor de mente aberta um crescente fascínio que não permite que a leitura seja abandonada antes da última linha.
Todo o enredo se desenrola no dia 13 de outubro de 1977 – marcado, na História do Brasil, por dois episódios catárticos: a queda do general Sylvio Frota, ministro do Exército do Governo Ernesto Geisel e um dos baluartes da chamada linha dura que remanescia do golpe militar de 1964; e o primeiro título paulista do Corinthians depois de quase 23 anos de dramática abstinência. A jornada de Marcello Brancaleone, um jovem editor, adversário do golpe e torcedor do Corinthians, alinhava esses dois eventos.
Jornalisticamente, prólogo e epílogo resgatam os acontecimentos reais. Cada um dos dezoito capítulos se baseia numa cor, num ritmo musical e num órgão do corpo humano. Cada qual tem um formato de texto. Lancellotti brinca com as apropriações. Por exemplo, um dos capítulos, quase herético, se apoia no ordinário da missa católica. Outro, jocoso, segue o roteiro de uma bula de remédio. No conjunto, o uso meticuloso e apaixonado das palavras, do qual Lancellotti confirma ser um mestre, torna desafiante e instigante a leitura deste livro surpreendente.