O mandato social que foi outorgado à psiquiatria na aurora da modernidade delineou uma linha divisória entre loucura e sanidade, pela qual a desrazão foi medicalizada e finalmente transformada em alienação mental. No caldo de cultura da Revolução Francesa enunciou-se a transitividade entre razão e desrazão, rompendo com a inflexibilidade presente na Idade Clássica, quando se conjugavam sempre no intransitivo. Esta mudança, que caucionava a crença num projeto terapêutico para a loucura, mostrou também a impossibilidade de reconhecimento desta em sua singularidade e diferença. Em decorrência disso, a loucura como obra e produção foi sendo desconsiderada, num contexto em que se acionou a violência ortopédica para empreender a conversão de seu espírito em errância. Nem mesmo a psicanálise, que tanto prometera nos seus primórdios ? quando, com Freud, reconhecia no delírio uma tentativa de cura ?, ficou fora disso. Nos funestos tempos pós-freudianos, também ela se voltou para a normalização da loucura, modelada agora pela estrutura edipiana. O familiarismo seria então a moral que deveria ser imposta aos desvarios da psicose, como se a cura desta implicasse em sua neurotização. Oriundo do movimento de Reforma Psiquiátrica e das propostas de abolição do manicômio, o trabalho de Ana Marta Lobosque destaca que este não é apenas um território geográfico e social, já que se configura também nos registros imaginário e simbólico de nossa existência coletiva. Necessário seria, portanto, traçar uma outra cartografia social e novos jogos de linguagem (Wittgenstein), para que a coexistência seja possível. Por isso mesmo, numa direção marcadamente anti-hegeliana de leitura da loucura, este livro se debruça sobre a filosofia de Nietzsche para propor uma transvalorização da ética e da política, com a finalidade de reconhecer não apenas a positividade da loucura como experiência, mas também de que maneira ela pode ser um remodelador de nossa cultura. É nesta perspectiva teórica que Ana Marta Lobosque lança mão de outros autores contemporâneos, provenientes da matriz nietzschiana ? Foucault, Deleuze e Guattari ?, para esboçar a desconstrução dos conceitos de lei, desejo e culpa, dominantes no Ocidente. Tudo isso, é claro, para contornar e perfurar os obstáculos, propondo novas práticas de convívio com a loucura, e para romper definitivamente com os muros asilares presentes nestes jogos de verdade (Foucault), no intuito de que a coexistência possa ter, enfim, mão dupla.