Se um vizinho incomoda, podemos chamá-lo para uma conversa e tentar solucionar amigavelmente o problema. Caso não funcione, o jeito é reclamar com o síndico; acionar a polícia é a terceira via. Como a justiça tarda e falha, arranhar o carro dele pode trazer alguma paz de espírito. Será, no entanto, apenas um paliativo assim como vociferar, xingar, ameaçar. A verdade é que a saída mais fácil pode estar numa faca afiada ou numa pistola carregada... Não deve ter sido por acaso, afinal, que o Novo Testamento transformou o ame seus vizinhos do livro anterior em ame seus inimigos: as duas palavras parecem significar a mesmíssima coisa nessa sociedade fraturada que, em uma narrativa precisa, ágil e irônica, Patrícia Melo retrata em Gog Magog, sua décima primeira obra literária. “Não somos só o que comemos, somos também o que escutamos, concluiu o pacato professor de biologia após Ygor se mudar para o apartamento de cima. A vida que o trabalho na rede pública de ensino podia pagar era modesta, mas antes da chegada do novo vizinho ele possuía o que logo passou a ter certeza ser o mais luxuoso bem do século 21 o silêncio, a paz doméstica. Ygor, o senhor Ípsilon, aparentemente calçava botas de ferro em casa, tinha as mãos furadas (as coisas caíam sem parar, quebravam, por vezes voavam nas paredes) e ocupava suas madrugadas copulando histericamente ou gargalhando como uma hiena. Pode o ruído incessante produzido pela sociedade contemporânea provocar instintos homicidas num morador de uma grande cidade? No novo romance da aclamada escritora Patrícia Melo, um rotineiro problema entre um pacato professor e seu novo vizinho acaba se transformando numa guerra bárbara, narrada em ritmo frenético e com a linguagem ácida e irônica que são a marca da autora, um dos principais nomes da ficção policial e urbana brasileira. Confrontando bem e mal, crime e castigo, sanidade e loucura, vida e morte, som e silêncio, Patrícia Melo constrói uma trama verossímil, ambientada num Brasil violento e desigual, onde a vida perdeu seu valor fundamental e o homicídio passou a ser uma forma de resolver problemas corriqueiros.