Em Salmo (1975), Friedrich Gorenstein (1932-2002) constrói uma trama fantástica baseada na passagem mítica do Anticristo pela URSS entre 1933 e 1973. Ao longo de 40 anos, o Anticristo é testemunha de momentos cruciais da história soviética, como a fome nos anos 1930, a invasão dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a evacuação, o pós-guerra, a censura stalinista, etc. Estruturado em cinco partes, aborda quatro grandes flagelos divinos: a fome, a espada, a luxúria e a doença, por meio de personagens vívidas e tocantes, como a jovem e melíflua Maria, nascida em uma pequena aldeia da Ucrânia, e Ánnuchka, da cidade de Rjév, que surgem em histórias cujas imagens impressionam pela força poética.Seguindo a tradição de autores como Thomas Mann em José e seus irmãos e Mikhail Bulgávov em Mestre e Margarida, Gorenstein utiliza passagens bíblicas como base de seu enredo, mas o faz a sua maneira: transporta-as diretamente para o século 20. Em seu projeto mais ambicioso, Gorenstein certamente delineia uma polêmica com Dostoiévski ao eleger o Anticristo como seu herói, mas este não surge como inimigo de Cristo, mas como seu irmão. Salmo é uma façanha assombrosa e impactante, no qual são tratados temas gerais, em especial a questão judaica, mas não só. Há uma discussão contínua sobre as manifestações do Mal e as profecias bíblicas, sobre a relação da humanidade com seus ídolos, suas crenças e seu destino.